"... faltam-me as vísceras de fora quando as palavras se deixam antever. " in Memórias Internadas

28.1.13

equívoco permanente



boca aberta
de boca a boca.
assombram-se as línguas
nas palavras gustativas.

ra in " Memórias Internadas "

27.1.13

REMORSO POR QUALQUER MORTE - JORGE LUIS BORGES


Já livre da memória e de qualquer esperança,
quase futuro, ilimitado, abstrato,
não é um morto, o morto: ele é a morte.
Como esse Deus dos místicos,
de Quem devem negar-se os predicados,
o morto ubiquamente alheio
é só a perdição e ausência do mundo.
Roubamos-lhe tudo,
não lhe deixamos uma cor nem uma sílaba:
é este o pátio que os seus olhos já não partilham
e aquele o passeio onde perscrutou a sua esperança.
Até o que pensamos
poderia ele pensar;
repartimos por nós como ladrões
todo o caudal das noites e dos dias.


Fervor de Buenos Aires  ( 1923 )


JORGE LUIS BORGES

Obra Poética Vol. 1
Trad.: Fernando Pinto do Amaral  .  Quetzal  setembro 2012

21.1.13

QUATRO ANDAMENTOS PARA UM ALFABETO - ( 2005-2007 ) . Manuel Gusmão


O FUTURO OUTRORA   ( a; - g; )



g;

Livre é o dom nas mãos do mundo: a alegria.

Nunca saberás dizer como se move sobre as águas
                                                              [a verdade
- a verdade que dança no teu corpo - e no seu teatro
sopra as almas como o vento as telas.

Mas para que uma última vez possas dançar
podemos, sim, pôr aqui o fogo
e a árvore da música: a vibração da sua haste

comunica-se; E o mundo estremece: a vibração
do mundo; quando não estamos a olhar.



MANUEL GUSMÃO
A Terceira Mão
CAMINHO  2007  .   poesia o campo da palavra

19.1.13

O Aprendiz Secreto - António Ramos Rosa



Ao fim de cada construção diária, ao crepúsculo, o construtor sobe a uma torre de pedra para meditar um pouco. A plenitude da tranquilidade é perfeita nos campos fulvos e ondulados em redor, coberto de ervas altas, de  flores e arbustos e marginados por um riacho sob a penumbra verde de um arqueado tecto de folhagem. Dir-se-ia que o olhar do construtor encontrou o ser em extensão, o ser que se oferece, no seu mutismo eloquente, e ao mesmo tempo se guarda no mesmo espaço do seu tranquilo esplendor. A meditação não é mais do que a contemplação de uma matéria que contem em si o excesso da sua energia calma e a densidade materna que envolve todas as interrogações e torna supérfluo e intruso o pensamento. Por isso o construtor se integra na paisagem  e, reflectindo-a, não a elabora nem a altera. Toda a sua vida está intacta e plenamente segura na indistinção entre o seu íntimo e a túmida e fresca serenidade da paisagem que o envolve. (...)


O APRENDIZ SECRETO
ANTÓNIO RAMOS ROSA

Quasi  .  1ª EDIÇÃO, JANEIRO 2001

1.1.13

GUARANIS ( Mito da criação ) ROSA DO MUNDO



Nhamandu, primeiro pai verdadeiro!
é sobre a terra que Nhamandu Grande Coração,
divino espelho do saber das coisas,
se anima.
Tu que fazes com que se animem
aqueles a quem deste o arco,
eis: de novo nós nos animamos.
As coisas são assim: quanto às Palavras indestrutíveis,
as quais nada, jamais, enfraquecerá,
nós,
os pouco numerosos órfãos das coisas divinas,
nós as repetiremos, animandos-as.
Que nos possamos então animar
e animar-nos uma vez mais,
Nhamandu, primeiro pai verdadeiro!

Nhamandu, primeiro pai verdadeiro,
a tua divindade que é uma,
do teu saber divino das coisas,
saber que desdobra as coisas,
faz com que a chama, faz com que a bruma
se engendrem.

Ele ergueu-se:
do seu saber divino das coisas,
saber que desdobra as coisas,
o fundamento da Palavra, ele sabe-o por si próprio.
Do seu saber divino das coisas,
saber que desdobra as coisas,
o fundamento da Palavra,
ele o desdobra, desdobrando-se,
ele faz disso a sua própria divindade, o nosso pai.
A terra ainda não existe, reina a noite originária,
não existe o saber das coisas:
o fundamento da Palavra futuro, ele a desdobra então,
disso faz a sua própria divindade,
Nhamandu, primeiro pai verdadeiro.

Conhecido o fundamento da Palavra futura,
No seu divino saber das coisas,
saber que desdobra as coisas,
ele sabe então por si próprio
a fonte do que está destinado a reunir.
A terra não existe ainda,
reina a noite originária,
não existe o saber das coisas:
ele sabe então por si próprio
a fonte do que está destinado a reunir.

                                    TRAD.: VASCO DAVID


R O S A   DO   M U N D O
2001 POEMAS PARA O FUTURO
ASSÍRIO&ALVIM  .   3ª ED. AGOSTO 2001