"... faltam-me as vísceras de fora quando as palavras se deixam antever. " in Memórias Internadas

29.8.12

De Parts of a World - WALLACE STEVENS


DA POESIA MODERNA

O poema da mente no acto de encontrar
Quanto baste. Nem sempre teve
Que encontrar: a cena estava montada; repetia o que
Estava no guião.
                         Então o teatro foi mudando
Para outra coisa. Seu passado era uma lembrança.
Ele tem que estar vivo, que entender o discurso do sítio.
Tem que enfrentar os homens do tempo e encontrar-se com
As mulheres do tempo. Tem que pensar sobre a guerra
E tem que encontrar quanto baste. Tem
Que construir um novo palco. Tem que estar nesse palco
E, como um actor insaciável, vagarosamente e
Com meditação, dizer palavras que ao ouvido,
Ao mais delicado ouvido da mente, repitam,
Exactamente, o que ele quer ouvir, ao som
Das quais, uma audiência invisível escuta,
Não a peça, mas a si mesma, expressa
Numa emoção como duas pessoas, como de duas
Emoções a tornarem-se numa. O actor é
Um metafísico no escuro, tangendo
Um instrumento, tangendo uma corda de metal que dá
Sons a passarem por súbitas exactidões, na totalidade
A conter a mente, abaixo da qual não pode descer,
Além da qual não quer elevar-se.
                                                   Deve
Ser o encontro uma satisfação, e pode
Ser de um homem patinado, uma mulher dançando, uma mulher
Penteando-se. O poema do acto da mente.

FICÇÃO SUPREMA
poemas
WALLACE STEVENS

edição bilingue - tradução e prefácio
Luísa Maria Lucas Queiroz de Campos
ASSÍRIO&ALVIM  -  Junho 1991

27.8.12

ELEGIAS - FRIEDRICH HÖLDERLIN

                              
                              PRANTO DE MÉNOM POR DIOTIMA


                                                   1

Todos os dias saio em busca de algo diferente,
     Demandei-o há muito por todos os atalhos destes campos;
Além nos cumes frescos visito as sombras,
     E as fontes; o espírito erra dos cimos para a planície,
Implorando sossego; tal como o animal ferido se refugia nas florestas,
     Onde antes repousava pelo meio-dia à sua sombra, fora de perigo;
Mas o seu verde abrigo já lhe não dá novas forças,
     O espinho cravado fá-lo gemer e tira-lhe o sono,
De nada servem o calor o calor da luz nem a frescura da noite,
     E em vão mergulha as feridas nas ondas da torrente.
E tal como é inútil à terra oferecer-lhe a agradável
     Erva curativa e nenhum zéfiro consegue estancar o sangue que fermenta,
O mesmo me acontece, caríssimos! Assim parece, e não haverá ningém
     Que possa aliviar-me da tristeza do meu sonho?

FRIEDRICH HÖLDERLIN
ELEGIAS

tradução e prefácio
Maria Teresa Dias Furtado
ASSÍRIO&ALVIM  .  Abril 2000

26.8.12

ARRANJOS PARA ASSOBIO - Manoel de Barros



SUJEITO

Usava um Dicionário do Ordinário
com 11 palavras de joelhos
inclusive bestego. Posava de esterco
para 13 adjetivos familiares,
inclusive bêbado.
Ia entre azul e sarjetas.
Tinha a voz de chão podre.
Tocava a fome a 12 bocas.
E achava mais importante fundar um verso
do que uma Usina Atômica!
Era um sujeito ordinário.


MANOEL DE BARROS
POESIA COMPLETA
CAMINHO  -  2011
a edição portuguesa reproduz integralmente o texto da edição brasileira

24.8.12

QUATRO ANDAMENTOS PARA UM ALFABETO ( 2005-2007 ) Manuel Gusmão


1. O FUTURO OUTRORA   ( a; - g; )


a;

Teria talvez mudado a mão do vento; ou súbito seria
um ritmo outro nas árvores invadindo a partitura;
Ou talvez apenas fosse que ali

perto ou longe - tendo podido cantar  -  então
                                                       [cantasse.

Teriam vibrado os contornos das figuras; a voz
teria posto fogo às páginas que escurecidas
redemoinhavam nos paredões abandonados

junto ao rio, demasiado
fundo, demasiado lento, demasiado antigo.

MANUEL GUSMÃO
A Terceira Mão

poesia o campo da palavra   CAMINHO  2007





22.8.12

Notas sobre a melodia das coisas - Rilke

I

Estamos mesmo no princípio, percebes? Como
que antes de tudo.
Com mil e um sonhos para trás de nós e parados.

II

Não consigo imaginar um saber mais sagrado do
que este:
O homem deve tornar-se um principiante.
O que escreve a primeira palavra de uma tirada
secular.

Notas sobre a melodia das coisas
RAINER MARIA RILKE
AVERNO | 2011  
Tradução  SANDRA FILIPE

18.8.12

AS LEIS DO CAOS - Gastão Cruz

A ARTE DOS VERSOS


1.

O poeta persegue o movimento do mundo, procura fixá-lo,
dar-lhe uma imagem estável. Trata-se de um trabalho destinado 
ao malogro, mas é no permanente renovar desse equívoco que
se origina a poesia. E porque utiliza um instrumento tão fluido
como o próprio real, o poeta transforma o encontro sucessivamente
adiado na ilusão que cada poema julga fixar, faz dessa ilusão a
energia da imagem que não se fixa, o ponto de fuga em que se
interceptam a poesia e a vida.

AS LEIS DO CAOS . GASTÃO CRUZ
ASSÍRIO&ALVIM  - SETEMBRO 1990  

15.8.12

Yusuf Al-Khal - SÍRIA


basta! disse ela
a dor está nos meus lábios
a dor está no meu peito
estou todo dorido
basta!
fecha a luz e dorme,
pontos negros mancham a luz da aurora.

dormirei
e o mundo dormirá comigo
nada de sonhos
que nos acordem, a morte dos sonhos acorda-nos

vigilante está uma floresta
que arde até às cinzas.

trad.: ADALBERTO ALVES
ROSA DOS MUNDOS
2001 POEMAS PARA O FUTURO
ASSÍRIO&ALVIM - Direcção editorial  MANUEL HERMÍNIO MONTEIRO