"... faltam-me as vísceras de fora quando as palavras se deixam antever. " in Memórias Internadas

31.12.12

QUATRO ANDAMENTOS PARA UM ALFABETO - ( 2005-2007 ) . Manuel Gusmão

O FUTURO OUTRORA   ( a; - g; )



f;

Ouves o desconcerto: essas aves rasgam o sangue
que as inventa e cantam roucas, crocitam e grasnam
ásperas o amargo e doce crepúsculo da manhã

que outra vez no teu corpo nasceria.

Ouves também esse verão antigo. E depois
escutarás a estação que traduz as coisas
para mais perto do seu nome

e abre a árvore ao claro incêndio das suas aves.

                     Folheando-a, a mão do mundo

dobrava a noite que entrava
enquanto o mar descia o amor até aos corpos
e isso era durante séculos uma enseada clara.


MANUEL GUSMÃO
A Terceira Mão
CAMINHO  2007  .   poesia o campo da palavra


30.11.12

QUATRO ANDAMENTOS PARA UM ALFABETO - ( 2005-2007 ) . Manuel Gusmão


O FUTURO OUTRORA   ( a; - g; )



e;

Olhas a lenta e pastosa sintaxe do mundo de cá
que te cerca de uma a outra margem e assobia
íntima e falsa beijando na tua nuca o beijo próximo

e verdadeiro dessa asa que da loucura dizem

dulcíssima. É apenas o som mecânico e oxidado
do ferro velho, no lusco-fusco dos bastidores
um teatro esventrado pela flor negra da carne

azul, essa flor que cresce carnívora.
E vês então a boca do mar abocanhando o rio

e regurgitando os detritos dos humanos: aviões
elegantíssimos e por demais eficazes; bombas
giratórias e algálias do mais puro cristal.


MANUEL GUSMÃO
A Terceira Mão
CAMINHO  2007
poesia o campo da palavra

27.11.12

O QUE O DISCÍPULO ESCREVEU - Manuel António Pina



" Se tudo é ilusão,
se escrevo a ilusão de um poema ( o que quer que um poema seja ),
ou  a  ilusão  de  um  poema  se  escreve  a  si  mesma  ( o que quer
                                                                     que escrever seja ),
através de mim ( uma ausência ),
se a própria consciência disso é ilusão,
se a Palavra escreve através de palavras, de verbos e de
                        substantivos partilhando a mesma ilusão,
como um espelho reflectindo-se a si mesmo, uma sombra,
e se essa sombra é, por sua vez, a sombra de uma sombra de
                                                                       uma sombra
da Sombra,
se o Definido, no entanto, como um espesso coração, pulsa no
                                                        indefinido e no fugidio,
ou se paradamente olha
fitando o próprio olhar,
se Homero, e Shakespeare, e Santo Agostinho,
e Buda, e Bodhidarma,
são fugazes reflexos desse olhar,
se o discípulo pergunta e o mestre não responde, ou responde
            com alguma frase sem sentido ( pois não há sentido ),
ou se lhe bate, ou se o escorraça ( pois tudo é indiferente ),
se a Indiferença é, também ela, provavelmente, indiferente,
e é indiferente que, atrás de si, permaneça, ou não permaneça,
                                                                    rasto ou sombra,
se de outro modo ou do mesmo modo
algo, alguma coisa, nenhuma coisa..."


Isto foi o que o discípulo escreveu.
No entanto que mão ( que mão Real ) segurou a sua mão?


MANUEL ANTÓNIO PINA
NENHUMA PALAVRA
E NENHUMA LEMBRANÇA

ASSÍRIO&ALVIM   SETEMBRO 1999

21.11.12

ESCOLHIDO PELAS ESTRELAS - Zbigniew Herbert



O SENHOR COGITO E A IMAGINAÇÃO

1.

O Senhor Cogito sempre desconfiou
dos ardis da imaginação

do piano no cume dos Alpes
do qual saíam notas falsas

não apreciava os labirintos
as esfinges inspiravam-lhe desgosto

habitava uma casa sem cave
sem espelhos nem dialéctica

as selvas de quadros convulsivos
não eram a sua pátria

elevava-se raramente
nas asas da metáfora
para cair de seguida como Ícaro
nos braços da Grande Mãe

adorava tautologias
a explicação
idem per idem

que o pássaro é pássaro
a servidão servidão
o cutelo um cutelo
a morte morte

amava
o horizonte plano
a linha recta
a atracção exercida pela terra


ZBIGNIEW HERBERT
ESCOLHIDO PELAS ESTRELAS

antologia poética
apresentação e versões
JORGE SOUSA BRAGA
ASSÍRIO&ALVIM  -  OUTUBRO 2009

14.11.12

QUATRO ANDAMENTOS PARA UM ALFABETO - ( 2005-2007 ) . Manuel Gusmão


O FUTURO OUTRORA   ( a; - g; )

d;

e tu vês estas estranhas aves que são nomes velozes
e, desferidas, cicatrizam no corpo da terra o céu aberto
e a demais matéria do tempo que não cessa.
Outrora seriam rios e montanhas; florestas e deserto

foram depois estaleiros e refinarias desafectadas;
ou esse rebanho de gruas vermelhas que consigo
traziam a tempestade e deslocavam a cidade.

As paisagens mudavam de lugar e perdidos eram
os lugares e as gentes com quem nasceras.


MANUEL GUSMÃO
A Terceira Mão
CAMINHO  2007
poesia o campo da palavra

4.11.12

Maria Gabriela Lhansol - O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO

42

Meu menino passado,
De olheiras fundas e de olhos travessos,
Abertos e tapados de azul.
Eu contesto a cor, eu contesto
O que  for que seja imóvel. Se o azul
não for profundo, veloz e apurado,
Teu olhar verá apenas o que sabe.


MARIA GABRIELA LLHANSOL
O COMEÇO DE UM LIVRO É PRECIOSO

desenhos de ILDA DAVID´
ASSÍRIO&ALVIM  -  2003

14.10.12

Midgarthormr - J.L.BORGES


Sem fim o mar. Sem fim o peixe, a verde
serpente cosmogónica que encerra,
verde serpente e verde mar, a terra,
como ela circular. A boca morde
a cauda que vem dos remotos nexos
do outro confim. Ao nosso redor
o forte anel é tempestade, fulgor,
sombra e rumor, reflexos de reflexos.
É também a anfisbena. Eternamente
olham-se sem horror os muitos olhos.
Cada cabeça fareja crassamente
os ferros da guerra e os despojos.
Sonhado foi na Islândia. Pelos abertos
mares foi dividido e receado;
voltará com o barco amaldiçoado
que se arma com as unhas dos mortos.
Alta será a sua inconcebível sombra
sobre a terra pálida no dia
de altos lobos e esplêndida agonia
do crepúsculco esse que não se nomeia.
A sua imaginária imagem nos macula.
Pela madrugada o vi no pesadelo.

JORGE LUIS BORGES
Os Conjurados

DIFEL   1985  2ª edição
tradução de Maria da Piedade M. Ferreira e Salvato Teles de Meneses

1.10.12

QUATRO ANDAMENTOS PARA UM ALFABETO - ( 2005-2007 ) . Manuel Gusmão

O FUTURO OUTRORA   ( a; - g; )


c;

O crepúsculo do entardecer
sobre o eixo do tempo e sobre si mesmo rodando
abria a venenosa vertigem, a sua grande flor azul

e negra, esta flor de luto fechando-se sobre a terra.

É então que tendo talvez mudado a mão das águas
ou interrompido o tempo a mão do mundo
se terá lançado contra a solidão a voz sem mais -

era a noite nascente : a noite que apenas nascia


MANUEL GUSMÃO
A Terceira Mão
CAMINHO  2007
poesia o campo da palavra

25.9.12

RILKE - AS ELEGIAS DE DUÍNO

A QUINTA ELEGIA
Dedicada à Sra. Hertha Koenig

...

   E agora tu, ó encantadora,
tu por cima de quem saltaram,
silenciosas, as mais atraentes alegrias. É possível
que as franjas do teu vestido sejam felizes em vez de ti -- ,
ou que a verde seda metálica
que te cobre os jovens seios rijos
se sinta infinitamente acarinhada e repleta.

Tu,
sempre diversa em todas as oscilantes balanças do equilíbrio
fruta de mercado da insensibilidade,
publicamente exposta dos ombros para baixo.

Onde, oh onde fica o lugar - trago-o no coração - ,
em que durante muito tempo eles ainda não podiam, nem um do outro
se soltavam, como animais que se cobrem, não
verdadeiramente acasalados ; --
em que os pesos continuam a pesar;
em que ainda no giro vão
das varas vacilam
os pratos...

E de súbito nesse penoso lugar nenhum, de súbito surge
o sítio invisível, onde a pura escassez
incompreensivelmente se transforma - , dá o salto
para esse excesso vazio.
Onde sem números
se abre a conta de muitas parcelas.

...

AS ELEGIAS DE DUÍNO
RAINER MARIA RILKE

ASSÍRIO&ALVIM
introdução e tradução  MARIA TERESA DIAS FURTADO
2ª EDIÇÃO . 2002

5.9.12

QUATRO ANDAMENTOS PARA UM ALFABETO - ( 2005-2007 ) . Manuel Gusmão


O FUTURO OUTRORA   ( a; - g; )


b;

Tu, de pé, recortado pelo ar e pelos pássaros, acesso
negro, procuravas o lugar incerto em que o rio e o mar
se encontram. E teria talvez mudado a mão

das árvores que em mudando o vento
soprariam para o largo a tua vida. - Contos largos
se mo permitem. E, contudo, estreita ficava
a vida ao fim de ser contada. Contos e recontos:

assim o rio se perdera noutro mar
como na voz de quem cantava sem manhã

MANUEL GUSMÃO
A Terceira Mão

CAMINHO  2007
poesia o campo da palavra

4.9.12

LUGAR | herberto helder



                                    II

Há sempre uma noite terrível para quem se despede
do esquecimento. Para quem sai,
ainda louco de sono, do meio
de silêncio. Uma noite
ingénua para quem canta.
Deslocada e abandonada noite onde o fogo se instalou
que varre as pedras da cabeça.
Que mexe na língua a cinza desprendida.

E alguém me pede: canta.
Alguém diz, tocando-me com seu livre delírio:
canta até te mudares em azul,
ou estrela electrocutada, ou em homem
nocturno. Eu penso
também que cantaria para além das portas até
raízes de chuva onde peixes
cor de vinho se alimentam
de raios, raios límpidos.
Até à manhã orçando
pendúnculos e gotas ou teias que balançam
contra o hálito.
Até à noite que retumba sobre as pedreiras.
Canta - dizem em mim - até ficares
como um dia órfão contornado
por todos os estremecimentos.
E eu cantarei transformando-me em campo
de cinzas transformada.
Em dedicatória sangrenta
...

herberto helder
POESIA TODA

ASSÍRIO&ALVIM    NOVEMBRO 1990


29.8.12

De Parts of a World - WALLACE STEVENS


DA POESIA MODERNA

O poema da mente no acto de encontrar
Quanto baste. Nem sempre teve
Que encontrar: a cena estava montada; repetia o que
Estava no guião.
                         Então o teatro foi mudando
Para outra coisa. Seu passado era uma lembrança.
Ele tem que estar vivo, que entender o discurso do sítio.
Tem que enfrentar os homens do tempo e encontrar-se com
As mulheres do tempo. Tem que pensar sobre a guerra
E tem que encontrar quanto baste. Tem
Que construir um novo palco. Tem que estar nesse palco
E, como um actor insaciável, vagarosamente e
Com meditação, dizer palavras que ao ouvido,
Ao mais delicado ouvido da mente, repitam,
Exactamente, o que ele quer ouvir, ao som
Das quais, uma audiência invisível escuta,
Não a peça, mas a si mesma, expressa
Numa emoção como duas pessoas, como de duas
Emoções a tornarem-se numa. O actor é
Um metafísico no escuro, tangendo
Um instrumento, tangendo uma corda de metal que dá
Sons a passarem por súbitas exactidões, na totalidade
A conter a mente, abaixo da qual não pode descer,
Além da qual não quer elevar-se.
                                                   Deve
Ser o encontro uma satisfação, e pode
Ser de um homem patinado, uma mulher dançando, uma mulher
Penteando-se. O poema do acto da mente.

FICÇÃO SUPREMA
poemas
WALLACE STEVENS

edição bilingue - tradução e prefácio
Luísa Maria Lucas Queiroz de Campos
ASSÍRIO&ALVIM  -  Junho 1991

27.8.12

ELEGIAS - FRIEDRICH HÖLDERLIN

                              
                              PRANTO DE MÉNOM POR DIOTIMA


                                                   1

Todos os dias saio em busca de algo diferente,
     Demandei-o há muito por todos os atalhos destes campos;
Além nos cumes frescos visito as sombras,
     E as fontes; o espírito erra dos cimos para a planície,
Implorando sossego; tal como o animal ferido se refugia nas florestas,
     Onde antes repousava pelo meio-dia à sua sombra, fora de perigo;
Mas o seu verde abrigo já lhe não dá novas forças,
     O espinho cravado fá-lo gemer e tira-lhe o sono,
De nada servem o calor o calor da luz nem a frescura da noite,
     E em vão mergulha as feridas nas ondas da torrente.
E tal como é inútil à terra oferecer-lhe a agradável
     Erva curativa e nenhum zéfiro consegue estancar o sangue que fermenta,
O mesmo me acontece, caríssimos! Assim parece, e não haverá ningém
     Que possa aliviar-me da tristeza do meu sonho?

FRIEDRICH HÖLDERLIN
ELEGIAS

tradução e prefácio
Maria Teresa Dias Furtado
ASSÍRIO&ALVIM  .  Abril 2000

26.8.12

ARRANJOS PARA ASSOBIO - Manoel de Barros



SUJEITO

Usava um Dicionário do Ordinário
com 11 palavras de joelhos
inclusive bestego. Posava de esterco
para 13 adjetivos familiares,
inclusive bêbado.
Ia entre azul e sarjetas.
Tinha a voz de chão podre.
Tocava a fome a 12 bocas.
E achava mais importante fundar um verso
do que uma Usina Atômica!
Era um sujeito ordinário.


MANOEL DE BARROS
POESIA COMPLETA
CAMINHO  -  2011
a edição portuguesa reproduz integralmente o texto da edição brasileira

24.8.12

QUATRO ANDAMENTOS PARA UM ALFABETO ( 2005-2007 ) Manuel Gusmão


1. O FUTURO OUTRORA   ( a; - g; )


a;

Teria talvez mudado a mão do vento; ou súbito seria
um ritmo outro nas árvores invadindo a partitura;
Ou talvez apenas fosse que ali

perto ou longe - tendo podido cantar  -  então
                                                       [cantasse.

Teriam vibrado os contornos das figuras; a voz
teria posto fogo às páginas que escurecidas
redemoinhavam nos paredões abandonados

junto ao rio, demasiado
fundo, demasiado lento, demasiado antigo.

MANUEL GUSMÃO
A Terceira Mão

poesia o campo da palavra   CAMINHO  2007





22.8.12

Notas sobre a melodia das coisas - Rilke

I

Estamos mesmo no princípio, percebes? Como
que antes de tudo.
Com mil e um sonhos para trás de nós e parados.

II

Não consigo imaginar um saber mais sagrado do
que este:
O homem deve tornar-se um principiante.
O que escreve a primeira palavra de uma tirada
secular.

Notas sobre a melodia das coisas
RAINER MARIA RILKE
AVERNO | 2011  
Tradução  SANDRA FILIPE

18.8.12

AS LEIS DO CAOS - Gastão Cruz

A ARTE DOS VERSOS


1.

O poeta persegue o movimento do mundo, procura fixá-lo,
dar-lhe uma imagem estável. Trata-se de um trabalho destinado 
ao malogro, mas é no permanente renovar desse equívoco que
se origina a poesia. E porque utiliza um instrumento tão fluido
como o próprio real, o poeta transforma o encontro sucessivamente
adiado na ilusão que cada poema julga fixar, faz dessa ilusão a
energia da imagem que não se fixa, o ponto de fuga em que se
interceptam a poesia e a vida.

AS LEIS DO CAOS . GASTÃO CRUZ
ASSÍRIO&ALVIM  - SETEMBRO 1990  

15.8.12

Yusuf Al-Khal - SÍRIA


basta! disse ela
a dor está nos meus lábios
a dor está no meu peito
estou todo dorido
basta!
fecha a luz e dorme,
pontos negros mancham a luz da aurora.

dormirei
e o mundo dormirá comigo
nada de sonhos
que nos acordem, a morte dos sonhos acorda-nos

vigilante está uma floresta
que arde até às cinzas.

trad.: ADALBERTO ALVES
ROSA DOS MUNDOS
2001 POEMAS PARA O FUTURO
ASSÍRIO&ALVIM - Direcção editorial  MANUEL HERMÍNIO MONTEIRO

15.7.12

" Memórias Internadas"

... alicerçada na fome, a impertinência das artes atinge a profundeza aparente da ignorância. Nenhum carácter é validado quando ignora as texturas formicantes da vida. "

ra in  " Memórias Internadas "

24.4.12

A fossa de mentirosos indelicados,... EZRA POUND


...


A fossa de mentirosos indelicados,
               paul de estupidezes,
estupidezes malévolas, e estupidezes,
o solo, pus vivo, cheio de bicheira,
larvas mortas gerando larvas vivas,
               donos de bairros de lata,
usurários espremendo piolhos, lacaios da autoridade,
pets-de-loup*, sentados em pilhas de livros petrificados,
obscurecendo os textos com filologia,
               escondendo-os sob as suas pessoas,
o ar sem refúgio de silêncio,
               a corrente de piolhos, o ganhar de dentes,
e acima disso o palrar de oradores,
               o arrotar-de-cu dos pregadores.
               E Invidia,
a corruptio o fœtor, o fungus,
animais líquidos, ossificações derretidas,
apodrecer vagaroso, combustão fétida,
               beatas mascadas, sem dignidade, sem tragédia,
....m Episcopus, acenando um preservativo cheio de baratas,
monopolistas, obstrutores do conhecimento,
               obstrutores da distribuição.


* Literalmente significando peidos de lobo, a palavra refere-se aos académicos


DO CAOS À ORDEM (VISÕES DE SOCIEDADE DOS CANTARES DE EZRA POUND)
EZRA POUND
edição bilingue - tradução e prefácio - Luísa M.L.Q. Campos - Daniel Pearlman
ASSÌRIO&ALVIM  1993



23.4.12

LIVRO DE PRÉ-COISAS - Roteiro para uma excursão poética no Pantanal . Manuel de Barros



PONTO DE PARTIDA


ANÚNCIO
Este não é um livro sobre o Pantanal. Seria antes uma
anunciação. Enunciados como que constantivos. Man-
chas. Nódoas de imagens. Festejos de linguagem.
    Aqui o organismo do poeta adoece a Natureza. De
repente um homem derruba folhas. Sapo nu tem voz
de arauto. Algumas ruínas enfrutam. Passam louros
crepúsculos por dentro dos caramujos. E há pregos pri-
maveris...
    ( Atribuir-se natureza vegetal aos pregos para que
eles brotem nas primaveras... Isso é fazer natureza.
Transfazer.)
    Essas pré-coisas de poesia


Manuel de Barros
POESIA COMPLETA
CAMINHO 2011

12.4.12

OS VIVENTES (1979) - Carlos Nejar

    NICANOR E SEU CAVALO


Nunca vi ninguém olhar
com tal ternura um cavalo
e um cavalo navegar
nos seus olhos, onde é mar
e o mar, apenas cavalo.


Nunca vi ninguém olhar
Nicanor naqueles olhos
que pareciam findar
onde os espaços se foram.
Nicanor sabia olhar
sem o menor intervalo
como se lhe fosse apanhar,
a toda brida, os andares.


E se podiam falar
num trote pequeno ou largo,
com rédea de muito amparo,
o corpo estando a montar
a eternidade cavalo.




Antologia Poética de Carlos Nejar
Prefácio, organização e selecção de ANTÓNIO OSÓRIO
Pergaminho 2003

10.4.12

A construção implicava um silêncio - António Ramos Rosa

.
A construção implicava um silêncio e um sono em que a origem se mantivesse envolta no pólen da sua inocência nativa. Sem veemência e sem precipitações, o construtor iria colocando as pedras ao ritmo da respiração e acariciando os ângulos que iria entrevendo como se estivesse a modelar um rosto de uma fragilidade extrema. No interior de um corpo vivo, que seria tanto seu como de um outro, a luz do horizonte iluminaria a penumbra da indizível sede e daria à sua casa o flexível equilíbrio de uma construção aberta à insondável germinação da terra.

O Aprendiz Secreto
António Ramos Rosa

UMA EXISTÊNCIA DE PAPEL - quasi - 2001

1.4.12





todos os nomes devem ser escritos
sem dedução de significado
[ aqui, do outro lado, entre lados ]

a ar ou sangue sem a secura do acaso

[ respiro água composta de tudo e morro todos os dias ]

e um seixo é grande

quando a lágrima o visitar
[ nunca pedra maquinada ]
sem tempo aprazado 


ra in " Memórias Internadas "

30.3.12

POEMAS CONCEBIDOS SEM PECADO - Manoel de Barros

    INFORMAÇÕES SOBRE A MUSA


    Musa pegou no meu braço. Apertou.
    Fiquei excitadinho pra mulher.
    Levei ela para um lugar ermo ( que eu tinha que fazer uma
lírica ):
    - Musa, sopre de leve em meus ouvidos a doce poesia,
a de perdão para os homens, porém... quero seleção,
ouviu?
    - Pois sim, gafanhoto, mas arreda a mão daí que a hora
é imprópria, sá?
    Minha musa sabe asneirinha
    Que não devia de andar
    Nem na boca de um cachorro!
    Um dia briguei com Ela
    Fui pra debaixo da Lua
    E pedi uma inspiração:
    - Essa Lua que nas poesias dantes fazia papel
principal, não quero nem para cavalo; e até logo, vou
gozar da vida; vocês poetas são uns intersexuais...
    E por de japa ajuntou:
    - Tenho uma coleguinha que lida com sonetos de dor
de corno; por que não vai nela ?


Manoel de Barros
POESIA COMPLETA
CAMINHO  -  2011

28.3.12

Friedrich Hölderlin - FRAGMENTOS DE PÍNDARO

                                             A idade


Quem de forma justa e sagrada
Passa a vida,
Docemente alimentando-lhe o coração,
Longa vida criando,
A esse acompanha-o a esperança, que
À maioria dos mortais
Rege a tão versátil opinião.


Uma das mais belas imagens da vida, o modo como os costumes
inocentes preservam o coração vivo, de onde nasce a esperança;
esta concede então também à simplicidade um florescimento, com
as suas diversas tentativas, e torna ágil o sentido, e tão longa a vida,
na sua demora precipitada.



Friedrich Hölderlin
FRAGMENTOS DE PÍNDARO

tradução, notas e posfácio
BRUNO C. DUARTE
ASSÍRIO & ALVIM

26.3.12

COBRA | O espelho é uma chama cortada, um astro . herberto helder



O espelho é uma chama cortada, um astro.
E há uma criança perpétua, por dentro, quando se vive em recintos
cheios de ar alumiado. De fora, arremessam-se
               às janelas
as ressacas vivas dos parques. Ela toca o nó
               do espelho de onde salta
uma braçada de luz. Cada lenço que ata,
               a própria seda do lenço
o desata. E o rosto que jorra do espelho
               volta aos centros
               arteriais.


Todos os anos fundos, essa extensa criança
sente brotar da terra como árvores
               do petróleo
a peste bubónica, fina na temperatura, alastrada nos bordados
das paredes ou nas crateras da cama. Os lençóis
               nascem do linho que trepida
no abismo da terra, das sementes abraçadas pelas ramas
               das nebulosas.


É perfeito o espelho quando apanha
               um rosto nuclear.
Morre-se muito mais em cada doença, nesses
apartamentos que as noites sufocam
               nos braços de mármore.
               A energia das jóias.
O nó do sexo no espelho, as chamas agarradas
               entre o umbigo e o ânus.
Esse trabalho da claridade quando as válvulas
               se destapam


Correntes atómicas passam de lado a lado.
E ficam os buracos furiosos por onde o mundo
               sopra
               um meteoro a jacto, uma cara.
Os jardins deslocam-se através de si próprios
               com as centelhas, defronte
das planas constelações dos espelhos.


E então, na assimetria severa, ela amaria
               transformar-se,
súbita e solar  -  equinocialmente no espelho o relâmpago
               côncavo do girassol
espacial.  Que sai assim do corpo: os filões arrancados
               desse mesmo espelho.
E ela imagina na teia de fogo a argila que se transmuda
em porcelana: a curva labareda de uma chávena
               expelida dos fornos.
E entre guardanapos, da mesa à boca,
arde em seu anel de estrelas metalúrgicas
               a colher em órbita
               -   a assombrosa força terrestre da chávena.
E a infância desaparece nas funduras das casas,
               com os electrões fechados.


herberto helder
POESIA TODA
ASSÍRIO&ALVIM  1990




20.3.12

HISTÓRIA DE UMA DOENÇA . CHARLES TOMLINSON

.
III


Palpitando nas palavras?
O verso não sabe
onde a doença se torna dança
nem a pode repetir:


é esta a dádiva
com que não contava:
por mim nunca a escolheria,
nem a posso enjeitar:


rodopiando e dançando,
ou assim parece -
a despeito da dupla
violência de luz e de sonhos:


este é o anjo com a espada
a cintilante palavra de dois gumes
uma hesitação à entrada
do Éden, tarde, ou cedo.


CHARLES TOMLINSON
Poemas
Selecção e tradução
de GUALTER CUNHA
Cotovia - 1992