"... faltam-me as vísceras de fora quando as palavras se deixam antever. " in Memórias Internadas

28.12.10

A pele que as máscaras deixam ver




Texto quase integral, encontrado com máscaras simples em 2009

" Máscara Higiénica
Esta máscara não é um EPI ( Equipamento de Protecção Individual )
Certifique-se sempre que as máscaras são as adequadas e estão devidamente ajustadas. Como qualquer máscara, o uso incorrecto ou o não seguimento das instruções, pode levar a doenças graves ou incapacidadedevido, à exposição em atmosferas perigosas...
Aviso:... Apenas e só, devem ser usadas para reduzir o desconforto provocado pela exposição a partículas não tóxicas e para ajudar a proteger o produto da respiração do utilizador. "



18.12.10

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por traz dos olhos
fundo onde permanece
a reserva de favos
que o fogo impetuoso
ainda não destruiu
resiste a cera que suporta
o mel cristalino e puro
que vou tragando

que dissonância
sobreponho ao indecifrável
timbre que me arde e rebenta
de não ouvir tocar em movimento
que cedo afirmei

que dissonância impiedosa
me troca o tempo que atiro
como se ontem fosse dúvida
que não devia existir

e que dissonância soa
quando o pólen incandescente
que é a norma iniciática
está em face de moldagem
e arrefecimento consistente
que a raridade me faz perceber
que a excepção confunde a regra

tenho que engolir as palavras
que o mel me dá
e beija-las quando os lábios
se encontrarem na rua escolhida
certa pelo fuso e hora
que podem não ser

descongelo o meu tempo
que nada frio dissone a essência
inquestinável

.




4.12.10

Tenho, por estes longos e deliciosos dias, confrontado-me com a vida no seu estado mais puro. Uma vontade imensurável de a amar em toda a sua plenitude; nos problemas, na angústia das permanentes incertezas, no trabalho que estou a desenvolver para um evento expositivo para Janeiro, nas pequenas coisas que vou soltando em forma de escrita e na disponibilidade desejada para sentir os outros e deixar que me sintam a mim.

Ontem, em conversa intensa e interessante, que a determinada altura transbordou do leito normalmente sereno e fluído do meu rio, por questões de semântica e amplitude compreensiva toldada, pressenti que a inundação não prevista, não podia estar relacionada com as nuvens que tinham acabado de passar. Inconsequente, a almofada adormeceu-me.
Ao acordar, lembrei-me do Antoni Tàpies e de um artigo que escreveu em 1970, " Nada é Mesquinho", em que ele faz o esforço de tentar explicar por palavras, o que a todo o instante lhe é solicitado sobre a sua obra - " Além disso, pensamos também: não é o meu trabalho, para isso existem os críticos e os comentadores de arte que o podem fazer. Mas os remorsos que nos provoca a constância de tanta gente de boa fé não param de espicaçar-nos. ... Geralmente, quem pergunta quer saber qualquer coisa de uma obra determinada, ou até apenas de um sinal ou de um fragmento concreto. E hoje,..., o sentido de uma obra não se encontra sequer na própria obra, pois a obra está relacionada com muitas outras, próprias ou alheias. Explicar uma obra de arte já é quase fazer toda a história da arte do nosso tempo." Recorrendo a parábolas e metáfora, remetendo para situações comparativas com outras artes e posturas de contemplação e práticas da arte em outras civilizações, continua o esforço. "...Olhemos finalmente para uma determinada obra minha, posto que o leitor deve querer saber de uma vez por todas como é que me vou desenvencilhar de tudo isto. E vamos pegar numa difícil, para ser mais engraçado. Numa que foi discutida e a propósito da qual alguém me disse, apesar de ser meu amigo, ser-lhe impossível ver nela fosse o que fosse. Trata-se de uma obra feita com fibra vegetal, uma espécie de filamentos de palha muito frisadas que se costumam utilizar para atapetar ou encher colchões. Intitula-se "Palha e Madeira".
A obra é uma tela branca, com palha entrelaçada colada e dividida em duas partes por uma ripa de madeira. Meticulosamente vai descrevendo a simbologia utilitária e cultural da palha, material pobre e de utilização desqualificada,"...E tudo isto não é por sentimentalismo nem por qualquer gosto "artístico" pela miséria, mas sim para fazer compreender a " naturalidade primeira" da dialética e da luta de todas as coisas,...", bem como a importância do dois resultante da divisão,"...Os entendidos em simbolismos aplicados à arte - embora, prudentemente, quase nunca extraiam de tudo isto consequências práticas - dir-nos-iam, claro, muito sobre mais coisa do que eu sobre este dois: a oposição, o conflito, a reflexão, o equilíbrio ( ou o desequilíbrio em potência), o criador e a coisa criada, o preto e o branco, o masculino e o feminino, o yin e o yang, a vida e a morte, o bem e o mal, o alto e o baixo."

Quando me perguntam pela vida, tenho maiores dificuldade em a mostrar que o Tàpies tem em relação à sua Obra; não tenho o génio nem a mestria ou erudição e vida vivida que o Mestre tem, por isso vou cita-lo, "...Para o pintor existe apenas um monte de palha, e um dois. E ainda um dois que é um. E todos têm o direito a dizer-lhe, se quiserem, que é um farsante, que tudo isso é falso, que é um engano. Porque ele julga o mesmo. Um quadro não é nada. É uma porta que conduz a outra porta. A arte, por mais excelente que seja, será sempre mais uma manifestação da "maya", do engano que tudo é. E nunca encontraremos a verdade que procuramos num quadro, pois esta aparecerá depois da última porta que o contemplador souber franquear com o seu próprio esforço. E quanto mais importante for o quadro, e mais importantes as personagens nele pintadas, e mais cores e mais camadas de tinta nele houver, mais espesso será o véu que nos ofusca a verdade e menos encontraremos o caminho."
Embora tenha iniciado o texto de forma optimista, de vez em quando também me apetece fazer como o Mestre, embora a componente do sonho esteja suspensa, "...E então, penso que mais vale virar costas a tudo e sentarmo-nos numa cadeira, como um dia me disse a minha companheira que fiz num sonho; uma cadeira a flutuar no meio da brancura do espaço infinito; e, de repente, olhar para a terra e sentir aquela emoção tão intensa e sublime que a fez chorar vivamente ao ver espalhadas umas migalhas de coisas, nada, uns resíduos ligeiros, uns fios de palha..."

O frémito impulsionador que me impele para a incontornável afirmação de algumas coisas na vida, que não sei separar da arte, não é ofuscado por caldeirões de ouro que me vão seduzindo para descansar. Gosto da palha para repousar o espírito, mesmo que me incomode o corpo.
O galgar das margens afinal aconteceu, pela preocupação afectuosa de perceberem se o pão que tenho que conquistar, ainda estava em farinha ou no forno a cozinhar.


As citações foram retiradas do livro
" Antoni Tàpies - a prática da arte "
Edições Cotovia

1.12.10

Trago sempre comigo um livro, se poder chamar livro a um objecto que quando o abro à procura do que me está à acontecer, do que ainda pode vir, do que não sei dizer ou não encontro forma de esclarecer me responde sem página marcada nem linha sublinhada. Deixa-me, sem nada pedir, levar-lhe palavras significativas e fica inteiro. Quando volto, encontro-o sempre refeito e sinto-lhe o prazer da conversa. Os livros são assim quando os tornamos nossos, vivem ao nosso lado, respira-nos os olhos e alimentam-nos sempre.

" A intensidade de uma dor suscita não a paciência nem a aceitação mas a negação e o ressentimento. Perante a agressão anónima do corpo o espírito perde a tranquilidade e é incapaz de se sobrepor à violência que o nega e o confunde. A esta negação natural o espírito opõe a violência de uma negação gratuita e inoperante. O ser não pode construir nenhum abrigo, uma vez que a dor é a ruptura insuperável de qualquer construção e a imposição e exposição do insuportável para a qual não existe nenhum subterfúgio nem estratégia de abafamento ou de redução. Para esses momentos o construtor não tem nenhum plano, apenas a sala vazia que não sabe como preencher e que provavelmente ficará vazia.

O Aprendiz Secreto
António Ramos Rosa "