"... faltam-me as vísceras de fora quando as palavras se deixam antever. " in Memórias Internadas

31.12.09

Fui ao Porto

Cheguei...toquei - já desço...a Francisca.
Linda! Não lhe sentia a dimensão do corpo há muito tempo.

Dentro, inundei.
Abracei forte... - cuidado pai!



10.11.09

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e as folhas caem
folhas leves
outonais
pesam chumbo no peito
costas da terra
e está escuro
escuro fechado
como olhos mortos
apontados aos ramos
das folhas
.

6.11.09

" Deambulações Oblíquas "

" Se escrevo é porque nunca vejo mesmo quando vejo
e porque o que sinto mesmo quando me deslumbro é sempre indefinido

mas não escrevo para chegar a uma conclusão
nem para determinar o que é inexprimível "

António Ramos Rosa - Deambulações Obliquas

29.9.09

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o sangue seca
feito carne
na boca que me despeja
seca morta
pendurada por um gancho

podiamos ser fruto aromado
vermelho toranja
palavras suadas no teu ouvido
labiadas no meu
andamento corporal espiralado

precisavamos de crescer
.

17.7.09

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Pressinto o fio da navalha
em movimentos pendulares descendentes
a retalhar a exangue
bomba sentimental
Nada se prende em infame ausência
o sangue iniciador da carne
o espelho originário da forma
nem a palavra pai

À inevitável queda do sol
juntam-se as sombras
memórias inacabadas em tempo doentio
.

6.7.09

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Onde o dia nasce muito cedo
abraçámos o mesmo oceano
na parte do canal orlado de areia quente
e coqueiros paraíso que nos deixava estar

Sentimos o odor forte depois das chuvas
terra e capim aquecidos pelo sol
Não encontrei ainda o incenso certo
Quando chove procuro-o louco de nariz no ar
encontraste?
Tento enganar a memória
fecho os olhos não consigo lá chegar

Nunca mais ouvi a palavra macua
tamboradas funebres soarem das árvores
marrabenta ritmar os corpos suados
chiii minino

Nunca mais senti feijão-macaco
estetado na pele
pêlo de saguim no meu colo
e os amendoins de reserva nas bochechas
a cacimba da manhã

Nunca mais vi terra tão compacta
erguida por por formigas
pessoas da ilha a deixar em repouso
cinzas e flores sobre o mar
feira de domingo em frente de uma catedral

Nunca mais comi farinha de mandioca cozinhada
com peixe seco a que me fazia convidado
coco fresco ralado por um ferro rendilhado
na ponta de um banco
depois de lhe beber a água fresca

A norte deixei a parte da vida
que dizem e sei ser a essência
de quando a inocência nos vai sendo roubada
Mas tinha que estar tão longe
e não conseguir voltar?

Fecho os olhos as memórias fecham
cansado de ausências
Nunca mais fui livre em paisagem infinita


Em que parte abraçaste o Índico?
.


17.6.09

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Tu, Eu
um gesto, outro, o mesmo
tocas-me, anseio
sinto-te, desvaneço
toco-te, abres
como a terra que desconheço
e o mar
Respiramos o mesmo ar
por quatro narinas juntas,
lábios selados

continuo a não saber nada
.
A solidão - a que fere os ossos e carnes restantes, ausente de palavras ditas, verdadeiramente afectada pela ausência da pele - não é escolha!!! É o que deixamos que seja, é o que deixam que aconteça, é o que esperam perante a invisibilidade da vida. O resto, são inconfidências maltratadas no confessionário das boas vontades flutuantes, agradável horizontalidade.

21.5.09

deus-não-deus


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Vejo, a ritualização da imagem santa rumo aos braços do cristo-rei, pétreo filho, em missa junto à borda terrena do rio, mãos juntas e olhos na miséria pululante oportunamente servidora de inchados dogmáticos. Desconfio, que deus utilizado não está ali, zangado com uns e outros, por terem abandonado o exemplo da sua mão biológica. Se ali estivesse, jesus, filho de deus e da imaculada, virava os ministérios da praça a que chamam comércio, acompanhado pelos que não estão onde vejo chorar lágrimas secantes, quando o conforto do ordenado chega a meio do mês seguinte, depois dos cremes e gravatas. Esquecem que a maior parte sobrevive como eles agora sentem a vida.
Falta-lhes, talvez, a vivência de um não-deus, o outro, próximo da pele, junto aos olhos, ouvir o bater da essência da vida, reconhecer que uma sincronia pode ser ritmo e arritmo eternamente válidos. Assim, quando somos abalados pelo que aos outros não reconhecíamos, o peso da avassaladora onda, possa ser atenuado pelo que sabemos e pelo outro, não-deus.
Falta-nos acreditar, que podemos ser insuflados por lábios carnudos como na boca de um trompete em permanente jam session
.

13.5.09

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a garganta sente
o alcatrão novo
respiro-lhe os vapores recentes
o caminho sinalizado
confunde-me
ausentes os sinais ser estar

fico suspenso
por um nó
górdio sabe

.

11.5.09

Sábado, fui à feira olhar, tocar, cheirar livros e envolver-me com o " Meninos de Ninguém"


Já estava marcado, a Ana ia apresentar o menino dela, "Meninos de Ninguém". Troquei o horário do que viria a ser o "happening", tinha gravado 16 e na verdade era 18. Havia tempo para ver a chuva a regar as fibras que já foram árvores, belo sacrifício, que os "livreiros" teimavam em proteger, "- São baratos, mas temos que cuidar deles...". Pensei que talvez alguns, precisem de água para crescer...Faltavam 20 minutos para as 18, dirijo-me ao stand da Ulisseia e perguntei onde era a apresentação, " Na praça central, mais acima...". Já sabia onde era,( dadas as circunstâncias pensei que...), estrado coberto de vermelho, tenda em rede branca protectora (?), para a autora e convidados oradores e cadeiras debaixo de uma árvore para os assistentes. Espantado e convencido, sigo ao encontro da Ana e do resultado fixado em livro, da pessoa que é, do seu trabalho e talento.
Aceno para marcar presença. Ela gentil sorriu, interrompe e chama-me. Cumprimentos apresentados, vi a Sandra, irmã, que não via há muito tempo. Conversa em dia, saudades mortas e continua bonita ( o Telmo é um homem com sorte ), e vejo algumas pessoas conhecidas, não de aperto de mão, mas de referência enquanto profissionais.

" Happening "

Chovia, adia-se? A tenda afinal só protegia do sol. Nada disso, ainda bem!
Guião rasgado, improviso a nascer e foi bonito de se ver, todos a contribuírem para que a chuva fizesse parte da assistência. Quem estava queria, quem não chegou não queria! Este é um momento único para um criador, sentir que a cortesia não faz parte.
As intervenções foram brilhantes, iluminaram a Ana, que a cada elogio pestanejava (se fosse eu babava-me ), anotava e quando tomou a palavra agradeceu os elogios, explanou o seu posicionamento e motivação profissional. A Julieta Monginho, para além de outros elogios, convido-a a participar em " inquérito" no "seu" tribunal. O Adelino Gomes coloco-a como sua igual, para além de servir de "pé de microfone" como disse, para que a Ana falasse. Toda esta situação, com momentos muito interessantes e participados, só foi possível porque a organização da feira não "pensou" na habitual chuva que aparece por esta altura.
Do Livro, primeiro vou sorver as palavras, depois tentar dizer alguma coisa...vamos a ver se sou capaz!



8.5.09

Ao meu irmão



Longe pouso o olhar
a paisagem não é minha
terra viva
nos meus pés
nus

Aconchego-me
a parte do meu sangue
posso dormir
habitar os ermos
que me estavam vedados

5.5.09

Ontem, sentou-se ao meu lado uma Senhora!


Ontem, sentou-se ao meu lado uma Senhora, e que Senhora!
Cheirava a corpo, nada tirou da idade que tem, rugas todas bem definidas e era bonita. Nada lhe sei da vida, mas deve ter sido dura pela mãos desenhadas pelo tempo. É difícil encontrar senhoras assim, Hedonismo e Narciso andam muito ocupados a tratar das deusas que por ai habitam nos nossos olhos imaginários.
Eu, que não sou nenhum deus nem deusa, deu-me para perder a barriga, rapar o cabelo para apagar a careca e as brancas e tentar que umas deusas que conheço ( não posso ser injusto, elas não são as deusas hedonarcisas ), me dispensem uns segundos do seu olhar.

2.5.09

Mãe da minha filha

Não me lembro de te dizer que quando o resultado dos nossos corpos não chegava, ficava mal por ti. Não te mostrei a alegria e o medo transbordantes, quando me mostras-te o teste azul e branco, que deve estar no porta jóias com motivos marinhos.
Lembro-me de uma foto, que deve estar na terceira ou quarta gaveta do móvel de entrada, em tua casa, feita por nós no bar da Fundación Pilar y Joan Míro. Em fundo um painel em azulejos grandes, iconograficamente mirosiano, muito bonito. Estas sentada a uma mesa, top preto, calças verde-azeitona e nos pés uns chinelos. O teu olhar pousa enternecido na Francisca, que rodopia no meio do bar feliz de liberdade. Estão lindas!
Nunca te disse, teres-me feito pai não pode ser rasurado de mim, por mais volta e revolta que as nossas vidas sofram !

Obrigado, mãe da minha filha,
tem uma vida feliz!
Obrigado!

Dou-te flores Mãe



O líquido que bebi dentro de ti
soube-me a pouco
Bebi outros à procura do teu
e da camada de tempo

que respirámos juntos


] esta gravado
em nota escondida dos olhos [



Dou-te flores
todas as que conheço
e as que nunca vi

28.4.09

Preciso

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Um dia pode ser hoje estou frio
sol quente inunda lisboa
na esplanada buondi da estação rossio
preciso que o vento circular
me traga o reflexo dos meus olhos
do olhar que procuro encontrar
Um dia preciso de café quente
a queimar-me a língua na tua boca
puxar a minha com as mãos que só tu tens
deslizantes pelo tempo que estou a ver
Um dia preciso preciso sussurar
que os olhos o sol o café a estação e lisboa
és tu ausente pelo medo da resposta
de te dizer preciso

25.4.09

25 de Abril

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Estava a escrever um texto, mas o que vem a seguir, tira-me o folgo.

" Ás vezes o construtor detém-se. A obra afigura-se-lhe um montão de ruínas e, exausto, nem sequer consegue levantar uma pedra. Recorda então o fulgor fresco de uma manhã inicial, a ligeireza dos movimentos ascensionais, a ingenuidade de uma visão aberta e consonante, as perspectivas puras que se projectavam sobre um mar fascinante na sua lenta e azul tranquilidade. Algo de subtil e precioso germinará ainda sob a massa confusa das sensações em que o ser se asfixia e imobiliza? A vivacidade de uma festa no deserto poderá ainda actualizar a festa de outrora, a festa do princípio de todos os princípios? O construtor é neste momento o ignorante supremo na sua nuvem obscura, trabalhado pelas ondas negativas da desolação. Mas este momento, por negativo que seja, é já o despertar para a necessidade de construir a partir da resistência dos materiais opacos da construção e do seu peso maciço em que está petrificada a energia do ser. "

de António Ramos Rosa " O Aprendiz Secreto "

23.4.09

KITSCH AGRÍCOLA

Quando posso e preciso de confortar o estômago e um café, vou à Casa das Queijadas, aqui em Porto Alto. A variedade e qualidade são interessantes. Para lá chegar passo quase sempre por uma rua que até ontem nada tinha de especial, para além de um condomínio fechado com todas as coisas próprias de quem pensa que vive bem isolado e de forma prestigiosa...etc.
A caminho, parei para ver uma pequena laranjeira, carregada de frutos, com uma cova perfeita para a rega, muito bem atada a uma estaca que serve de guia para medrar direitinha, tudo muito bem feito. Sim senhora, bom trabalho! Vou fotografar para poder mostrar como é que as coisas se fazem à séria. Puxo da máquina, enquadro, faço zoom...não queria acreditar! Desvio a máquina, aproximo-me...e a coisa é de plástico. Até na agricultura... Fotografo, mas por uma razão diferente da inicial. Enquanto caminhava para a queijadinha, a imagem já não me saía da cabeça, bem como as razões que podem levar uma pessoa a trabalhar tanto para tentar enganar-se a si e aos outros. O agricultor Kitsch não come os frutos, os outros não os podem roubar, e assim não está certo! Pensei logo no aproveitamento artístico da coisa; um pomar com a multiplicação do objecto e cova incluída...a instalação estava feita e a justificação conceptual e chocante do caminho da arte e agricultura de mãos dadas, land art...e as leituras políticas e sociais, etc...Logo a seguir a ideia esfumou-se !!! Eu não sou capaz de fazer isto e não posso pedir ao agricultor Kitsch, porque ele " plantou uma " para não ter trabalho. Tenho pena!! A escala de um pomar com um hectare destas coisas ficava brutal!!!

22.4.09

Palestina 2003

Ficaram-me gravadas para sempre, as imagens de um pai em desespero, sentado na sombra contra uma parede segurando no peito o filho acabado de abater por um soldado israelita. Aquela bala também me atingiu a mim. Não morri, mudei.


Sinto-me a mortalha
de todas as crianças
enterradas sujas pelas armas
Mereço o peso absurdo da cova

21.4.09


Enquanto espero sentado
na cadeira de pinho bichoso
tratada e afagada com verniz aquoso
dois pardais na linha horizontal do muro
compõem o som da rua
Penso em água, rio, marés

Sinto-te como gotas que me tocam
deslizam para o meu leito
e são o meu mar

20.4.09

Lava


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Preciso de erguer  lava
acabada de brotar
e sentir o escaldante
a tocar-me no peito



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Dores


Palavras simples
são dores que senti
no outro lado da pele

Não as li na tua boca
Precisava de acordar
com uma duas nos meus lábios

Morreram-me
Não as senti onde tinha sede

Sopro


Labiaste-me o mar
iodado do norte

Suplicaste-me palavras de amor
no meio da ponte e estava escuro

Tenho a maresia na boca
fresca sem ponto cardeal

pronta a estalar

19.4.09

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A frase, " O tempo não espera pela vida " é a culpada! Apareceu-me, já não me lembro porquê, sinuosa cintilante, persistente ao ponto de servir para me acordar quase todos os dias. Precisava de a escrever noutro sítio, sem serem os habituais blocos de notas de capas pretas e sem linhas... que cheios com o tempo da minha vida, são atirados para o monte que vai crescendo, até que um dia... já não me lembre do "click neural" que a originou, tipo " Que coisa, a vida é tempo " !
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cinzas nocturnas
escondo-me oblíquo
tempo espero pela vida


RauAu